Artesanato da Serra da Estrela
"Mãos hábeis transformam as matérias que a natureza oferece. Tem sido assim ao longo dos séculos. Antes da industrialização, apenas o trabalho artesanal supria as necessidades das comunidades rurais e embora, desde há algumas décadas para cá, materiais novos tenham invadido o pacífico quotidiano destas gentes, não se perderam, pelo menos irremediavelmente, esses saberes ancestrais. Permanece, ainda que sem o fulgor que outrora teve, o sábio aproveitamento dos recursos naturais disponíveis localmente; falamos das fibras vegetais e animais, das peles, da madeira... cuja transformação artesanal assume real importância, sobretudo no seio de comunidades rurais, as aldeias do Parque Natural da Serra da Estrela.O artesanato tradicional produzido em algumas das aldeias ainda não perdeu o cariz utilitário que desde sempre lhe esteve subjacente, materializando-se em objectos úteis e funcionais, mas também em peças, mais ligadas aos actos festivos e à, decoração, reforçada a sua expressão estética. A permanência das necessidades tem invalidado o desaparecimento deste tipo de actividade e do próprio artesanato.

Também os latoeiros, que ainda há poucos anos trabalhavam em algumas das aldeias da zona de Vinhais, estão em extinção. Moldavam chapas de cobre ou de zinco unidas por uma solda que, em muitos casos, é um segredo de profissão. Em cobre produzem-se essencialmente, alambiques e caldeiras, usadas na confecção de doces e enchidos ou como tachos de uso quotidiano. O repertório das formas em zinco é mais variado, incluindo, igualmente, caldeiras, para idêntico uso ao das de cobre, mas também cântaros, candeias, almotolias, funis e regadores para a rega dos hortos.
Os trabalhos em madeira também foram outrora mais fundamentais na vida destas comunidades. Construíam- se carros de bois em muitas das aldeias e peças de uso doméstico, sobretudo osescanos, as masseiras e as arcas, constantes na cozinha vernácula de muitas casas rurais.
A imagem idílica da cesteira sentada na soleira da porta da sua casa xistosa, entrecruzando vimes quando os afazeres do campo amainam, está cada vez mais ausente do quotidiano. Todavia, a cestaria artesanal continua viva em muitas das aldeias. É uma actividade essencialmente feminina, embora fosse frequente assumir o outro género quando desenvolvida no seio de comunidades ciganas.
A sua importância é óbvia numa sociedade rural: os trabalhos agricolas e as lides domésticas são as principais actividades que absorvem estas produções e os próprios materiais usados podem ser subprodutos da exploração agro-silvícola tradicional.

Noutros lados, e sobretudo destinados aos trabalhos agrícolas mais pesados, são executados cestos em talas de castanho bravo entrançadas e rematadas por um entrançado mais fino. Mas, talvez, o mais frequente sejam os trabalhos em vime. Os vimes, ou ramagens do salgueiro, são apanhados no final do Verão e, antes de serem postos a secar podem ser, ou não, descascados, consoante a cor que se queira obter, que também pode ser dada através de anilinas. Para uso nos trabalhos agrícolas fazem-se grandes cestos de boca larga, de aspecto mais grosseiro e pesado, designados por coleiros, enquanto que os açafates são, geralmente, mais finos, com dimensões mais reduzidas, destinando-se a usos domésticos ou a conter objectos de costura, tal como as cestas, com uma asa única que une duas extremidades opostas da sua boca, que tendo funções idênticas às dos açafates, oferecem ainda a possibilidade de transportar para o campo as merendas servidas nas pausas do labor agrícola.
O trabalho artesanal feminino estende-se ainda, e talvez tenha aí a sua expressão mais interessante, à tecelagem. Desde tempos remotos, a transformação da lã e do linho assume grande importância, sobretudo, no seio de comunidades humanas que ao longo do tempo foram tendencialmente autárcicas.

Estas comunidades de montanha têm também à sua disposição um outro recurso bastante usado na produção têxtil: a lã. A genuína da região é proporcionada pelos ovinos da raça Churra Galega-Bragançana. Passados os rigores invernais faz-se a tosquia dos rebanhos - geralmente, nos inícios ou meados da Primavera, sendo o velo (lã) enrolado em feixe e arrecadado sujo até ter serventia; a lã para ser utilizada tem de ser amolecida em água quente, de um dia para o outro, para, em seguida, ser lavada, em água fria ou na correnteza do rio, e batida, antes de secar ao sol. Depois de seca e escaramiçada, ou carmea da, está pronta para ser fiada e, depois, tecida.
Ao tear tecem-se também os fios de algodão, adquiridos, já em meada, na feira ou no comércio local, e os trapos multicolores que juntos se transformam em garridos tapetes e mantas. A produção de buréis (pardos) desapareceu por completo deixando apenas rasto nas poucas peças de vestuário que possam ter ficado no fundo de uma velha arca de castanho e nas ruínas, ainda perceptíveis, de pisões que marginam alguns cursos de água.
Os tecidos de linho e lã, a par dos de algodão e trapos, têm aplicações diversas ligadas ao vestuário, de trabalho e de lazer, e aos usos domésticos. As produções podem apresentar a cor natural dos materiais usados, ser tingidas com colorantes naturais ou, independentemente disto, serem decoradas através do bordado de desenhos geométricos e naturalistas.
O homem vestia calças de burel ou de estopa e camisa de linho ou, igualmente de estopa. Os meotos, as meias e camisolas agasalhavam, homens e mulheres, durante os dias frios de Inverno. Os xailes de lã eram peça importante na indumentária de trabalho da mulher, enquanto que os de linho eram mais apropriados ao trajar de Domingo e de festa. Porém, estes figurinos foram-se convertendo em relíquias usadas, de quando em vez, em festas e romarias ou noutras manifestações mais ou menos folclóricas.

Neste transformar das matérias vegetais e animais ou dos metais oferece-se uma panóplia de cenários da vida quotidiana ainda possíveis de captar pelos olhares urbanos mais atentos às vivências genuínas e francas destas gentes raianas que, perspectivando o futuro, não negam a autenticidade dos saberes e da cultura que lhes foram legados."